sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Uma Carta Aberta ao Arcebispo de Cantuária


http://www.helenablavatsky.net/2013/01/o-futuro-do-cristianismo.html?m=1


6 de janeiro de 2013


O Futuro do Cristianismo

Uma Carta Aberta ao Arcebispo de Cantuária

Helena P. Blavatsky

 Helena Blavatsky em seu escritório, em 1887


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Nota Editorial de 2009:

Durante séculos, o Vaticano promoveu a tortura e a morte no fogo de
centenas de milhares  de pessoas inocentes. A desculpa era “Lúcifer”,
o inimigo  imaginário de um deus medieval sedento de sangue. A palavra
“Lúcifer”, porém, é muito anterior ao cristianismo e significa  “portador
da luz”. O termo designa o planeta Vênus, a “estrela da manhã”,
que anuncia o nascer do sol. A palavra foi distorcida pelos teólogos
medievais, quando eles decidiram fabricar um “inimigo terrível”
para  justificar o uso sistemático do assassinato em nome de Deus.
Em Londres, na etapa final da sua vida, Helena P. Blavatsky fundou
uma revista e chamou-a de “Lúcifer”. H.P.B. queria resgatar da fraude
teológica este termo pré-cristão da sabedoria universal. Foi em “Lúcifer”,
na edição de dezembro de 1887, que apareceu pela primeira vez o artigo
a seguir,  uma carta aberta ao Arcebispo de Cantuária. Seu título original é
Lucifer to the Archbishop of Canterbury, Greeting! (“Saudações de  
Lúcifer  ao Arcebispo de Cantuária!”).  A cidade de Cantuária (em inglês,
Canterbury) está situada no sudeste da Inglaterra e constitui o principal
centro religioso do país. Ali vive tradicionalmente o arcebispo que lidera
a Igreja Anglicana. Cabe registrar ainda que a Sociedade Teosófica
original já não existe. Ela deu lugar a um movimento amplo e marcado
pela diversidade de organizações. Portanto, no texto a seguir,
onde se lê “Sociedade Teosófica”,  deve-se ler “Movimento Teosófico”.

(Carlos Cardoso Aveline)

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Senhor Primaz de toda a Inglaterra,   

Fazemos uso de uma carta aberta a Sua Graça para transmitir a você e para fazer chegar através de você aos membros do clero, às suas ovelhas e a todos os cristãos em geral - que nos consideram como inimigos de Cristo - uma breve descrição da posição da teosofia em relação ao cristianismo, pois pensamos que chegou o momento de fazer isso.

Sua Graça é sem dúvida consciente de que a teosofia não é uma religião, mas uma filosofia ao mesmo tempo religiosa e científica; e que a principal tarefa da Sociedade Teosófica até agora tem sido fazer reviver em cada religião o seu espírito próprio que a anima, ao encorajar e ajudar o estudo do verdadeiro significado das suas doutrinas e das suas práticas. Os teosofistas sabem que quanto mais profundamente se avança na compreensão das doutrinas e das cerimônias de todas as religiões, maior e mais aparente se torna a sua semelhança básica, até que, por fim, se chega à percepção da sua unidade fundamental. Este terreno comum é a teosofia - a Doutrina Secreta de todas as épocas; que, diluída e disfarçada para se adaptar à percepção das multidões e às exigências de cada época, constitui a essência viva de todas as religiões. A Sociedade Teosófica tem lojas compostas por budistas, hindus, maometanos, parses, cristãos e livres-pensadores, que trabalham como irmãos no terreno comum da teosofia. E é precisamente porque a teosofia não é uma religião, nem pode cumprir o papel de uma religião para as multidões, que o sucesso desta Sociedade foi tão grande, não apenas em relação ao número crescente dos seus membros e à sua influência cada vez maior, mas também no que se refere à realização do seu trabalho - o resgate da espiritualidade na religião, e o cultivo do sentimento de FRATERNIDADE entre os homens. 

Nós, teosofistas, cremos que a religião é um incidente natural na vida do homem, no seu estágio atual de desenvolvimento; e que embora em casos raros os indivíduos possam nascer sem o sentimento religioso, uma comunidade deve ter uma religião, isto é, um laço de união - sob pena de cair na decadência social e na aniquilação material. Acreditamos que nenhuma doutrina religiosa pode ser mais que uma tentativa de descrever - para a nossa limitada capacidade atual de compreensão e nos termos das nossas experiências terrestres - grandes verdades cósmicas e espirituais que, no estado normal de consciência, sentimosvagamente, mais do que realmente percebemos e compreendemos; e uma revelação, para que possa revelar alguma coisa, deve necessariamente adequar-se às mesmas exigências do intelecto humano.

Na nossa avaliação, portanto, nenhuma religião pode ser absolutamente verdadeira, e nenhuma pode ser absolutamente falsa. Uma religião é verdadeira na medida em que atende as necessidades espirituais, morais e intelectuais da sua época, e ajuda o desenvolvimento da humanidade nestas áreas. Ela é falsa na medida em que bloqueia este desenvolvimento e prejudica a parte espiritual, moral e intelectual da natureza do homem. E as ideias transcendentemente espirituais sobre os poderes dirigentes do universo, adotadas por um sábio do Oriente, seriam para um selvagem africano uma religião tão falsa quanto o fetichismo inferior deste selvagem seria para aquele sábio, embora os dois pontos de vista devam necessariamente ser verdadeiros, em certa medida, porque ambos representam as mais elevadas ideias que estes indivíduos podem respectivamente conceber a respeito destes fatos cósmico-espirituais. Tais fatos jamais podem ser conhecidos na sua realidade pelo homem, enquanto ele for apenas um homem. 

Os teosofistas, portanto, respeitam todas as religiões e têm uma profunda admiração pela ética religiosa de Jesus. E não poderia ser de outro modo, pois estes ensinamentos que chegaram até nós são os mesmos que os da teosofia. Na medida, pois, em que o cristianismo moderno se conduz de acordo com a sua afirmação de que é a religiãoprática ensinada por Jesus, os teosofistas estão com ele de todo o coração. A partir do momento em que age contra esta ética, pura e simples, os teosofistas tornam-se seus opositores. Qualquer cristão pode, se quiser, comparar o Sermão da Montanha com os dogmas da sua igreja e o espírito que respira nela, e com os princípios que guiam esta civilização cristã e governam a sua própria vida; e então estará em condições de julgar por si mesmo até que ponto a religião de Jesus está presente em seu cristianismo, e até que ponto, consequentemente, ele e os teosofistas estão de acordo. Mas os cristãos declarados, e especialmente o clero, evitam fazer esta comparação. Como comerciantes que temem ir à falência, eles parecem ter receio de encontrar na sua contabilidade um saldo negativo que não poderia ser compensado contabilizando bens materiais em lugar de bens espirituais. A comparação entre os ensinamentos de Jesus e as doutrinas das igrejas foi, todavia, feita frequentemente - e muitas vezes com um grande conhecimento e uma perspicácia decisiva - tanto por aqueles que queriam abolir o cristianismo, quanto pelos que queriam reformá-lo; e o resultado total destas comparações, como Sua Graça deve saber, prova que em quase todos os pontos as doutrinas das igrejas e o modo de agir dos cristãos estão em contradição direta com os ensinamentos de Jesus

Temos o costume de dizer aos budistas, aos maometanos, aos hindus ou aos parses: “O caminho que conduz à teosofia passa por vocês mesmos, por sua própria religião”. Dizemos isto porque as suas crenças possuem um significado profundamente filosófico e esotérico, que explica as alegorias sob as quais são apresentadas ao povo. Mas não podemos dizer a mesma coisa aos cristãos. 

Os sucessores dos Apóstolos nunca registraram por escrito a doutrina secreta de Jesus - os “mistérios do reino dos céus” -, que foi dada a conhecer apenas a eles (seus apóstolos) [1]. Estes mistérios foram suprimidos, afastados, destruídos. O que nos chegou através do tempo são os preceitos, as parábolas, as alegorias e as fábulas que Jesus destinou expressamente aos espiritualmente surdos e cegos, e que deveriam ser reveladas mais tarde para o mundo, e que o cristianismo moderno ora as toma na íntegra, literalmente, ora as interpreta segundo a fantasia dos Padres da igreja secular. Em ambos os casos, elas são como flores cortadas: estão separadas da planta em que cresceram e da raiz de que esta planta tirou sua vida. Portanto, se fôssemos encorajar os cristãos, como fazemos com os fiéis de outras crenças, a estudarem por si mesmos a sua própria religião, a consequência seria não um conhecimento do significado dos seus mistérios, mas o redespertar da superstição e da intolerância medievais, acompanhado de uma formidável explosão de preces e sermões ditos apenas da boca para fora - tal como o que resultou na formação de 239 seitas protestantes, apenas na Inglaterra - ou, alternativamente, um grande aumento do ceticismo, pois o cristianismo não tem uma base esotérica conhecida pelos que o seguem. Porque mesmo você, Senhor Primaz da Inglaterra, deve estar dolorosamente consciente do fato de que não sabe absolutamente nada sobre os “mistérios do reino dos céus” ensinados por Jesus aos seus discípulos - que não seja conhecido pelo membro mais humilde e mais iletrado da sua Igreja.
  
Portanto, é facilmente compreensível que os teosofistas nada têm a dizer contra a política da Igreja Católica Romana de proibir, e a política das igrejas protestantes de desencorajar, qualquer investigação individual sobre o significado dos dogmas “cristãos” que seja correspondente ao estudo esotérico das outras religiões. Com as suas ideias e conhecimentos atuais, os cristãos não têm condições de empreender um exame crítico da sua fé com uma perspectiva de bons resultados. O seu efeito inevitável seria paralisar, ao invés de estimular, os sentimentos religiosos adormecidos; porque os estudos críticos da Bíblia e a mitologia comparada provaram de uma forma conclusiva - pelo menos, para aqueles que não têm interesse pessoal, espiritual ou temporal, na manutenção da ortodoxia -, que a religião cristã, tal como existe agora, é composta de cascas externas do judaísmo, com retalhos do paganismo e restos mal digeridos de gnosticismo e neoplatonismo.

Este curioso conglomerado que se formou gradualmente à volta do registro das palavras ditas por Jesus começou agora, eras mais tarde, a desintegrar-se e a desagregar-se, separando-se das joias puras e preciosas da verdade teosófica que durante tanto tempo ele encobriu e escondeu, mas que nunca puderam ser desfiguradas ou destruídas. A teosofia não só resgata estas joias preciosas do destino que ameaça o lixo ao qual estiveram tanto tempo misturadas. Ela também salva o próprio lixo de uma condenação completa; porque ela mostra que o resultado do exame crítico da Bíblia está longe de ser a análise última do cristianismo, uma vez que cada um dos pedaços que compõem os curiosos mosaicos das Igrejas pertenceu, em algum momento, a uma religião que tinha um significado esotérico. Só quando estes pedaços forem recolocados nos lugares que ocupavam originalmente poderá ser percebido o significado real das doutrinas do cristianismo. Para fazer tudo isto, contudo, é necessário um conhecimento da Doutrina Secreta tal como ela existe nas bases esotéricas de outras religiões; e o clero não possui este conhecimento, pois a Igreja escondeu as suas chaves, e depois as perdeu. 

Sua Graça compreenderá agora por que motivo a Sociedade Teosófica tem como um dos seus três “objetivos” o estudo das religiões e filosofias orientais, que lançam esta luz sobre o sentido oculto do cristianismo; e compreenderá também, segundo esperamos, que, ao fazê-lo, não agimos como inimigos, mas como amigos da religião ensinada por Jesus – o verdadeiro cristianismo, na realidade. Porque é só através do estudo destas religiões e filosofias que os cristãos poderão chegar em algum momento à compreensão das suas próprias crenças, ou descobrir o sentido oculto das parábolas e das alegorias ditas pelo Nazareno aos paralíticos espirituais da Judeia. Ao considerá-las como fatos literais ou como fantasia, as igrejas colocaram os seus próprios ensinamentos no ridículo e fizeram com que eles fossem desprezados, levando o cristianismo a um sério perigo de um colapso completo, debilitado como ele está pelos estudos históricos críticos e pelas pesquisas mitológicas, além de ser quebrado pela marreta da ciência moderna. 

Deveriam então os próprios teosofistas ser considerados pelos cristãos como seus inimigos, porque creem que o cristianismo ortodoxo é em tudo oposto à religião de Jesus; e porque têm a coragem de dizer às igrejas que elas são traidoras do MESTRE que elas pretendem venerar e servir? Longe disso, de fato. Os teosofistas sabem que o mesmo espírito que animava as palavras de Jesus existe em estado latente no coração dos cristãos, como existe naturalmente no coração de todos os homens. A sua doutrina fundamental é a Fraternidade Humana, cuja realização última só é possibilitada por aquilo que era conhecido muito tempo antes de Jesus como “o espírito de Cristo”. Mesmo agora este espírito está potencialmente presente em todos os homens e se tornará ativo quando os seres humanos não forem mais impedidos de se compreenderem, de se apreciarem e de simpatizarem entre si pelas barreiras da luta e do ódio, erguidas pelos sacerdotes e pelos príncipes.

Sabemos que os cristãos, nas suas vidas, se elevam frequentemente acima do cristianismo. Todas as Igrejas têm numerosos homens e mulheres nobres, virtuosos e com espírito de sacrifício, desejosos de fazer o bem durante suas vidas, segundo o seu grau de compreensão e as oportunidades que encontram, e que estão plenos de aspiração por coisas mais elevadas que as da terra - sendo seguidores de Jesus apesar do cristianismo.

Por indivíduos como estes os teosofistas sentem a mais profunda simpatia; porque só um teosofista, ou então uma pessoa que tenha a delicada sensibilidade e o grande saber teológico de Sua Graça, pode apreciar adequadamente as dificuldades horríveis contra as quais a frágil planta da religiosidade natural deve lutar, quando afunda com esforço suas raízes no solo estéril da nossa civilização cristã, e tenta florir na atmosfera fria e árida da teologia. Como deve ser difícil, por exemplo, “amar” um Deus como aquele que é descrito numa bem conhecida passagem de Herbert Spencer: 

“A crueldade de um deus Fidjiano que, representado como devorador das almas dos mortos e, pode supor-se, torturando-as enquanto as engole, é pouca coisa se comparada à crueldade de um deus que condena os homens a torturas eternas. … Atribuir aos descendentes de Adão, durante centenas de gerações, castigos horríveis por uma pequena transgressão que eles não cometeram; a condenação de todos os homens que não têm a possibilidade de recorrer a um pretenso método de obter o perdão, e do qual a maior parte dos homens nunca ouviu falar, e a reconciliação efetuada pelo sacrifício de um filho perfeitamente inocente, para satisfazer a suposta necessidade de uma vítima propiciatória, são modos de ação que, se fossem atribuídos a um dirigente humano, provocariam horror.”[2] 

Sua Graça dirá, sem dúvida, que Jesus nunca ensinou que se deveria adorar um deus como este. Nós, teosofistas, dizemos o mesmo. Contudo este deus é o deus cuja adoração é oficialmente pregada na Catedral de Cantuária, por você mesmo, Senhor Primaz da Inglaterra; e Sua Graça concordará seguramente conosco em que deve existir de fato uma centelha divina de intuição religiosa no coração dos homens, que os capacita a resistir tão bem quanto resistem à ação mortal de uma teologia venenosa como esta.  

Se Sua Graça dirigir o olhar à sua volta, verá desde a sua elevada posição uma civilização cristã em que uma luta frenética e sem trégua do homem contra o homem é, não só a característica que a distingue, mas também um princípio reconhecido. É um axioma científico e econômico bem estabelecido em nossos dias que todo progresso é conseguido através da luta pela vida e sobrevivência do mais apto; e os mais aptos a sobreviver nesta civilização cristã não são os que possuem as qualidades reconhecidas pela moralidade de todos os tempos como sendo as melhores - não são os generosos, os piedosos, os nobres de coração, capazes de perdoar, humildes, fiéis, honestos e bons - mas sim aqueles que são mais fortes em egoísmo, astúcia, hipocrisia, em força bruta, fingimento, falta de escrúpulos, crueldade e avareza.

Os indivíduos espirituais e os altruístas são “os fracos”, a quem as “leis” que governam o universo dão como alimento aos egoístas e aos materialistas - “os fortes”. A “ lei do mais forte” é a única conclusão legítima, a última palavra da ética do século 19, pois o mundo tornou-se um grande campo de batalha no qual os “mais aptos” descem como abutres para arrancar os olhos e o coração dos que caíram durante o combate. Será que a religião faz cessar a batalha? As igrejas espantam os abutres, ou reconfortam os feridos e os moribundos? Hoje a religião no mundoem geral não pesa mais que uma pluma, quando as vantagens terrestres ou os prazeres egoístas são colocados no outro prato da balança; e as igrejas não têm o poder de revivificar o sentimento religioso entre os homens, porque as suas ideias, o seu conhecimento, os seus métodos e os seus argumentos são os da Idade das Trevas. Senhor Primaz, o seu cristianismo é o de quinhentos anos antes da nossa época. 

Enquanto os homens discutiam para saber se este deus ou aquele outro era o verdadeiro deus, ou se a alma ia para este ou aquele lugar depois da morte, vocês, do clero, compreendiam a pergunta e tinham argumentos prontos para influenciar a opinião – pelo silogismo ou pela tortura, conforme fosse o caso. Mas agora é a própria existência de qualquer ser semelhante a Deus, ou de qualquer espécie de espírito imortal, que é questionada ou negada. A ciência inventa novas teorias sobre o Universo que ignoram com desprezo a existência de qualquer deus; os moralistas concebem teorias relativas à ética e à vida social nas quais a não-existência de uma vida futura é considerada como uma premissa; em física, em psicologia, em direito, em medicina, a única coisa necessária para assegurar o sucesso de um professor é que a exposição das suas ideias não contenha nenhuma alusão à Providência, ou à alma. O mundo é conduzido rapidamente à convicção de que deus é uma concepção mítica, que não tem de fato nenhum fundamento, e nenhum lugar na Natureza; e que a parte imortal do homem é o sonho estúpido de selvagens ignorantes, perpetuado pelas mentiras e pelos embustes dos padres, que fazem uma ampla colheita cultivando nos homens o temor de que as suas almas imaginárias sejam torturadas, por toda a eternidade, pelo seu Deus mítico, num Inferno que só existe em fábulas. Diante de tudo isto, o clero permanece, atualmente, silencioso e impotente. A única resposta que a Igreja sabia dar a “objeções” como estas era a tortura e a fogueira; mas agora ela não pode servir-se deste sistema de argumentação.

É certo que se o Deus e a alma descritos pelas igrejas são entidades imaginárias, então a salvação e a danação cristãs são puras ilusões da mente, produzidas em grande escala pelo processo hipnótico de afirmação e de sugestão, agindo cumulativamente sobre gerações de dóceis “histéricos”. Que resposta você dá a uma tal teoria da religião cristã, além da repetição de afirmativas e sugestões? Que modo tem você de reconduzir os homens às suas antigas crenças, além de fazer reviver os seus velhos hábitos? “Construam mais igrejas, rezem mais orações, fundem mais missões e a sua fé na condenação e na salvação será reanimada e uma nova crença em Deus e na alma será o resultado inevitável”. Tal é a política das igrejas. É a sua única resposta ao agnosticismo e ao materialismo. Mas sua Graça deve saber que responder aos ataques da ciência e da crítica modernas com armas como a afirmação e o hábito é como atacar metralhadoras usando bumerangues e escudos de couro. No entanto, enquanto o progresso das ideias e o aumento do conhecimento arruínam a teologia popular, cada descoberta da ciência e cada nova concepção do pensamento europeu avançado aproximam o espírito do século 19 das ideias do Divino e do Espiritual, conhecidos de todas as religiões esotéricas e da teosofia.

A Igreja alega que o cristianismo é a única religião verdadeira, e esta pretensão implica duas afirmações diferentes, a saber, que o cristianismo é uma religião verdadeira, e que não há religião verdadeira exceto o cristianismo. Parece que nunca passa pela cabeça dos cristãos a ideia de que Deus e o Espírito possam existir de qualquer forma diferente da que é apresentada nas doutrinas da igreja. O selvagem chama o missionário de ateu porque ele não transporta um ídolo na sua mala; e o missionário, por sua vez, qualifica de ateu qualquer um que não traga um fetiche no seu espírito; e nem o selvagem, nem o cristão parecem ter jamais suposto que possa existir uma concepção mais elevada que a sua em relação ao grande poder oculto que governa o Universo, e ao qual o nome “Deus” é muito mais aplicável. É difícil saber se as Igrejas tentam mais provar que o cristianismo é “verdadeiro”, ou provar que qualquer outra espécie de religião é necessariamente “falsa”; as más consequências que resultam deste seu ensino são terríveis. Quando as pessoas rejeitam o dogma, elas imaginam que rejeitaram também o sentimento religioso, e concluem que a religião é algo supérfluo na vida humana – uma forma de mandar para as nuvens coisas que pertencem à terra, uma perda de energia que poderia ser usada mais eficientemente na luta pela existência. O materialismo desta época é, portanto, consequência direta da doutrina cristã segundo a qual não existe poder dirigente no Universo, nem qualquer Espírito imortal no homem, além dos que foram descritos nos dogmas cristãos. O ateu, Senhor Primaz, é o filho bastardo da Igreja. 

Mas isto não é tudo. As igrejas nunca ensinaram aos homens alguma razão para serem justos, bons e sinceros, que seja mais elevada do que a esperança de uma recompensa ou o medo do castigo; e, quando eles abandonam a crença no capricho Divino e na injustiça Divina, as bases da sua moralidade ficam fragilizadas. Eles nem sequer têm uma moralidade natural à qual possam voltar conscientemente, pois o cristianismo ensinou-lhes a considerá-la como algo sem valor, alegando a perversidade natural do homem. Portanto, o interesse pessoal torna-se a única motivação da conduta, e o receio de ser descoberto, a única coisa que o afasta do vício. Assim, no que se refere à moralidade, bem como a Deus e à alma, o cristianismo empurra os homens para fora do caminho que conduz ao conhecimento, e precipita-os no abismo da incredulidade, do pessimismo e do vício. A Igreja é agora o último lugar onde os homens iriam procurar ajuda contra os males e as misérias da vida, porque eles sabem que a construção de igrejas e a repetição de ladainhas não influenciam nem os poderes da natureza nem os conselhos das nações. Eles sentem instintivamente que, desde o momento em que as Igrejas aceitaram o princípio da conveniência, elas perderam o poder de chegar ao coração dos homens, e agora elas só podem agir no plano externo, apoiando a ação do policial e do político.  

A função da religião é reconfortar e encorajar a humanidade na sua luta constante contra o pecado e o sofrimento. Isto só pode ser feito apresentando à humanidade o nobre ideal de uma vida mais feliz após a morte, e de uma vida mais digna sobre a terra, o que deve ser obtido nos dois casos por um esforço consciente. O que o mundo necessita agora é de uma Igreja que lhe fale da Divindade ou Princípio Imortal no homem como algo situado pelo menos ao nível das ideias e do conhecimento dos tempos atuais. O cristianismo dogmático não é adequado para um mundo que raciocina e pensa. Só aqueles que estão dispostos a lançar-se a um estado de espírito medieval podem apreciar uma Igreja cuja função religiosa (considerada como diferente da sua função social e política) é manter Deus de bom humor enquanto os fiéis fazem o que creem que não é aprovado por ele; cuja função é rezar para obter mudanças no clima; e, ocasionalmente, agradecer ao Todo Poderoso por haver ajudado a massacrar o inimigo. Não é de “curandeiros”, mas de guias espirituais que o mundo necessita hoje - um “clero” que lhe dê ideais tão adequados para a inteligência do nosso século como o eram o Céu e o Inferno, o Deus e o Diabo cristãos, na época de sombria ignorância e da superstição. Será que o clero cristão atende, ou pode atender, esta necessidade? A miséria, o crime, o vício, o egoísmo, a brutalidade, a falta de autorrespeito e de autocontrole que caracterizam a nossa civilização moderna unem as suas vozes num grito terrível e respondem - NÃO! 

Qual o significado da reação contra o materialismo, um materialismo cujos sinais hoje enchem o ar? O significado é que o mundo está mortalmente cansado do dogmatismo, da arrogância, da autossuficiência e da cegueira espiritual da ciência moderna, dessa mesma ciência moderna que os homens ainda ontem saudavam como a sua libertadora do fanatismo religioso e da superstição cristã, mas que, assim como o Diabo das lendas sacerdotais, reclama, como recompensa pelos seus serviços, o sacrifício da alma imortal do homem. E, enquanto isso, o que fazem as Igrejas? Elas dormem o sono pacífico obtido pelas doações e pela influência social e política, enquanto que o mundo, a carne e o diabo se apropriam dos seus segredos, dos seus milagres, dos seus argumentos e da sua fé cega.

Os espíritas - ó Igrejas de Cristo! - roubaram o fogo dos seus altares para iluminar as suas salas de sessões mediúnicas. Os salvacionistas pegaram o seu vinho sacramental e se embriagam espiritualmente nas ruas; o infiel roubou as armas com as quais vocês o venceram em outros tempos, e diz a vocês triunfantemente: “O que vocês afirmam, já foi dito muitas vezes antes”. Teve o clero alguma vez uma oportunidade tão esplêndida? As uvas da vinha estão maduras, e só faltam os trabalhadores eficazes para a colheita. Se vocês dessem ao mundo alguma prova, situada no padrão intelectual do que é verificável, de que a Divindade - o Espírito imortal no homem - tem uma existência real como fato da Natureza, será que os homens não os saudariam como salvadores que os libertaram do pessimismo e do desespero, do pensamento enlouquecedor e brutalizante de que não há para o homem outro destino a não ser um vazio eterno, após alguns breves anos de duras fadigas e sofrimentos? Como seus salvadores de uma luta assustadora pela satisfação material e pelas vantagens do mundo, consequência direta da crença de que esta vida mortal é o começo e o fim da existência? 

Mas as Igrejas não possuem nem o conhecimento nem a fé necessários para salvar o mundo, e a sua Igreja, Senhor Primaz, talvez ainda menos que as outras, porque está com a pesada carga de oito milhões de libras por ano à volta do pescoço. Vocês tentam em vão tornar o navio mais leve, lançando pela borda, como lastro, as doutrinas que os seus antepassados consideravam vitais ao cristianismo. O que mais pode fazer agora a sua Igreja, exceto fugir da tempestade com os mastros desguarnecidos, enquanto o clero tenta, debilmente, tapar os buracos do casco com a “versão revisada” da Bíblia, e procura impedir que o navio naufrague com a sua pesada carga social e política, levando para o fundo do mar a sua carga de dogmas e de doações?

Quem construiu a catedral de Cantuária, Senhor Primaz? Quem inventou e deu vida à grande organização eclesiástica que torna possível a existência de um Arcebispo de Cantuária? Quem estabeleceu as bases de um vasto sistema de impostos religiosos que lhe dá quinze mil libras por ano e um palácio? Quem instituiu os rituais e as cerimônias, as orações e as litanias que, ligeiramente alteradas e despojadas de arte e ornamento, fazem a liturgia da Igreja da Inglaterra? Quem extorquiu ao povo os orgulhosos títulos de “divino reverendo” e “Homem de Deus”, dos quais o clero da sua Igreja se apropria com tamanha confiança? Quem, de fato, exceto a Igreja de Roma? Falamos sem espírito de inimizade. A teosofia viu a ascensão e a queda de muitas crenças, e estará presente ao nascimento e à morte de muitas outras. Sabemos que a vida das religiões está sujeita à lei. Se vocês receberam uma herança legítima de Roma, ou tomaram posse pela violência, é uma questão que vocês devem decidir com os seus inimigos e com a sua consciência; a atitude mental frente à sua Igreja é determinada pelo seu valor intrínseco. Sabemos que se ela for incapaz de desempenhar a verdadeira função espiritual de uma religião será certamente exterminada, mesmo que o erro se encontre mais nas suas tendências hereditárias, ou no que a rodeia, do que em si mesma. 

A Igreja da Inglaterra, para usar uma comparação simples, é como um trem que prossegue a sua marcha graças à velocidade adquirida antes de o vapor ter sido cortado. Depois de ter deixado a linha principal, encontra-se num desvio que não leva a lugar algum. O trem está agora quase parado, e muitos dos seus passageiros o trocaram por outros meios de transporte. Os restantes estão, na maioria, conscientes de que durante este tempo só podiam contar com o pouco vapor que restou na caldeira depois que os fogos de Roma foram retirados. Eles suspeitam que, neste momento, talvez já estejam apenas brincando de andar de trem; mas o maquinista continua a assobiar, o controlador prossegue a sua inspeção, examinando os bilhetes, os freios foram acionados como antes e, convenhamos, não é uma brincadeira desagradável. As carruagens estão aquecidas e confortáveis e o dia é frio, e, desde que recebam gorjetas, os empregados da companhia são muito obsequiosos. Mas aqueles que sabem para onde querem ir não estão assim tão contentes. 

Durante vários séculos, a Igreja da Inglaterra conseguiu a difícil proeza de navegar em duas canoas ao mesmo tempo, dizendo aos católicos romanos: “Raciocinem!” e aos céticos: “Tenham Fé!” Foi regulando constantemente as forças desta atitude de duas caras que ela pôde permanecer durante tanto tempo em cima do muro. Mas agora, o próprio muro está caindo. A supressão das doações e a separação entre Igreja e Estado pairam no ar. E o que a sua Igreja invoca a seu favor? A sua utilidade. É útil ter muitos homens instruídos, morais, não-mundanos, espalhados por todo o país, impedindo o mundo de esquecer completamente a ideia de religião, e agindo como centros de ação benfeitora. Mas a questão agora já não é a de repetir orações e dar esmola aos pobres, como era há quinhentos anos atrás. As pessoas tornaram-se maiores de idade, e tomaram nas mãos o seu pensamento e a direção dos seus assuntos sociais, individuais e até mesmo espirituais, porque descobriram que o clero não sabe mais do que elas mesmas sobre as “coisas do Céu”. 

Mas a Igreja de Inglaterra, diz-se, tornou-se tão liberal que todos devem apoiá-la. Realmente, pode-se fazer uma excelente imitação da missa, ou ser um virtual Unitário, e ainda fazer parte do seu rebanho. Esta bela tolerância, no entanto, significa apenas que a Igreja achou necessário tornar-se um vasto campo comum, em que cada um pode armar a sua própria tenda e agir como lhe aprouver, desde que participe na manutenção dos benefícios. A tolerância e a liberalidade são contrárias às leis da existência de qualquer igreja que crê na condenação divina, e a sua aparição na Igreja da Inglaterra não é um sinal de vida renovada, mas antes da chegada da desagregação. Não menos ilusória é a energia manifestada pela Igreja na construção de igrejas. Se isto fosse um critério de medição do espírito religioso, que piedosa época seria a nossa! Nunca o dogma esteve tão bem alojado, embora os seres humanos sejam obrigados a dormir aos milhares nas ruas, e morram literalmente de fome à sombra das suas majestosas catedrais, construídas em nome d´Aquele que não tinha onde repousar a Sua cabeça. Terá Jesus dito a você, Sua Graça, que a religião não se encontra no coração dos homens, e sim nos templos feitos pelas mãos? Vocês não podem converter sua piedade em pedra e utilizá-la nas suas vidas; e a história mostra que a petrificação do sentimento religioso é uma doença tão mortal como a ossificação do coração. No entanto, ainda que as igrejas fossem multiplicadas por cem, e que cada pastor se tornasse um centro de filantropia, isso iria apenas produzir o trabalho que os pobres esperam dos seus semelhantes, mas não dos seus líderes espirituais - em lugar daquilo que eles pedem e não conseguem obter. Isso só colocaria em maior destaque a esterilidade espiritual da Igreja e das suas doutrinas. 

Aproxima-se o tempo em que o clero terá de prestar contas das suas ações. Você está pronto, Senhor Primaz, a explicar ao SEU MESTRE por que tem dado pedras aos Seus Filhos, quando eles lhe suplicavam por pão? Você sorri na sua imaginária segurança. Os servidores fizeram festas durante tanto tempo nos aposentos interiores da casa do Senhor, que pensavam que Ele certamente nunca voltaria. Mas Ele disse que Ele viria como um ladrão durante a noite; e eis! Ele está chegando já no coração dos homens. Ele está vindo para tomar posse do reino de Seu Pai no único lugar em Seu reino existe. Mas vocês não O conhecem! Se as próprias Igrejas não estivessem sendo carregadas pela onda de negação e de materialismo que dominou a sociedade, elas reconheceriam o germe do espírito do Cristo crescendo com rapidez no coração de milhares de seres, a quem agora classificam como infiéis e loucos. Reconheceriam neles aquele mesmo espírito de amor, sacrifício de si mesmo e piedade imensa pela ignorância, pela loucura e pelos sofrimentos do mundo, que surgiu em toda a sua pureza no coração de Jesus, assim como surgiu no coração de outros Santos Reformadores em diferentes épocas. Este espírito é a luz de toda verdadeira religião, e o archote com o qual os teosofistas de todos os tempos trataram de iluminar os seus passos, ao longo do caminho estreito que conduz à salvação - o caminho que é percorrido por toda encarnação de CHRISTOS ou o ESPÍRITO DA VERDADE. 

E agora, Senhor Primaz, expusemos muito respeitosamente a você os pontos principais de divergência e desacordo que existem entre a teosofia e as igrejas cristãs, e mostramos a unidade entre a teosofia e os ensinamentos de Jesus.  

Você viu a nossa profissão de fé, e conheceu quais são os nossos protestos e as nossas queixas contra o cristianismo dogmático. Nós, um punhado de indivíduos humildes, que não possuímos riquezas materiais nem influência sobre o mundo, mas somos fortes no nosso conhecimento, estamos unidos na esperança de cumprir a tarefa que você diz que lhe foi confiada pelo seu MESTRE, mas que é tão tristemente negligenciada por esse colosso opulento e dominador – a Igreja Cristã.  

Nós nos perguntamos se você chamará isso de presunção. Será que, nesta terra de liberdade de pensamento, de palavra e de ação, você não nos responderá exceto pelo anátema habitual que a Igreja reserva para todo reformador? Ou podemos esperar que as amargas lições da experiência, obtidas no passado pelas Igrejas devido a esta política, terão mudado o coração e iluminado o espírito dos seus dirigentes; e que o próximo ano, de 1888, verá os cristãos estender-nos a mão com toda a simpatia e boa-vontade? Isso seria apenas o reconhecimento de que o grupo relativamente pequeno chamado de Sociedade Teosófica não é pioneiro do Anticristo, nem fruto do Maldoso, mas, o ajudante prático, talvez o salvador da Cristandade, e que só está se esforçando por fazer a obra que Jesus - assim como Buddha e os outros “filhos de Deus” que o precederam - recomendou a todos os seus seguidores que realizassem, mas que as Igrejas, tendo-se tornado dogmáticas, são inteiramente incapazes de fazer.

E agora, se Sua Graça puder provar que somos injustos em relação à Igreja da qual você é o Chefe, ou em relação à teologia popular, prometemos reconhecer publicamente nosso erro. Contudo - “QUEM CALA CONSENTE”. 


NOTAS DE HPB: 

[1] Marcos, 4:11; Mateus, 13:11; Lucas, 8:10.

[2] “Religion: A Retrospect and Prospect”, na publicação periódicaNineteenth Century, Vol. XV, número 83, janeiro 1884.  


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Quando esta carta foi publicada, em 1887, o arcebispo de Cantuária era Edward White Benson. O texto acima faz parte da edição em 15 volumes dos “Collected Writings” (“Escritos Reunidos”), de H. P. Blavatsky, publicados pela editora TPH, Adyar, Índia, volume VIII, pp. 268-283.

Uma primeira tradução do texto, feita pelo teosofista português Humberto Álvares da Costa, apareceu na revista “Portugal Teosófico”, número 76, de 1999, pp. 7 a 12. Em dezembro de 2009, associados da Loja Unida de Teosofistas (LUT) fizeram a presente tradução especialmente para os nossos websites associados. Durante o trabalho foi consultada a versão de Álvares da Costa, com autorização do teosofista português.

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As Origens Pagãs e a Realidade Atual da Maior Festa do Mundo Cristão

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15 de dezembro de 2012


O Natal de Ontem e o Natal de Hoje

As Origens Pagãs e a Realidade
Atual da Maior Festa do Mundo Cristão

Helena P. Blavatsky 



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Nota Editorial:

Incisivo em sua crítica ao ritualismo vazio,
o texto a seguir faz a defesa da verdadeira
compaixão universal.  Extremamente atual no
século 21,  o artigo foi publicado pela primeira vez na
edição de dezembro de 1879 da revista indiana “The
Theosophist”. Por  esse motivo Helena Blavatsky se
refere, no primeiro parágrafo, a “nossos assinantes ocidentais”.

(CCA)

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Estamos atingindo aquela época do ano em que todo o mundo cristão se prepara para celebrar a mais notável das suas solenidades - o nascimento do Fundador da sua religião. Quando este texto chegar aos nossos assinantes ocidentais haverá festividades e alegria em todas as casas. No Noroeste da Europa e na América do Norte haverá azevinho e heras decorando cada casa, e as igrejas estarão  enfeitadas com sempre-vivas; um costume que vem das práticas antigas dos Druidas, “para que os espíritos silvestres possam congregar-se nas sempre-vivas, e permanecer ao abrigo da geada até que haja menos frio”. Nos países católicos, grandes multidões convergem para as igrejas durante a noite da “véspera de Natal”, para saudar imagens de cera da divina Criança, e de sua mãe Virgem, em sua vestimenta de “Mãe Celestial”.   

Para uma mente analítica, esta exuberância de rico ouro e de rendas, de cetim e veludo enfeitados com pérolas, e o berço coberto de joias, parecem de fato paradoxais. Quando pensamos na manjedoura pobre, velha e suja da estalagem judaica na qual, se devemos  acreditar no Evangelho, o futuro “salvador” foi colocado ao nascer por falta de um abrigo melhor, não podemos deixar de suspeitar que, diante do olhar deslumbrado do devoto ingênuo, o estábulo de Belém desaparece completamente. Para dizê-lo de modo mais suave, esta pomposa exibição não combina muito bem com os sentimentos democráticos e com o desprezo  verdadeiramente divino por riquezas materiais, que o “Filho do Homem”  sentia - ele que não tinha “onde descansar sua cabeça”.

Isso só torna mais difícil para o cristão comum compreender a afirmação explícita de que “é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um homem rico entrar no reino dos céus” -; a menos que a frase seja vista como uma ameaça puramente retórica e sem valor real. A Igreja romana agiu com inteligência ao proibir severamente os membros das suas paróquias de ler ou interpretar os Evangelhos por si mesmos, e ao deixar, enquanto isso foi possível, que o Livro proclamasse as suas verdades em Latim - “a voz que prega no deserto”. Nisso, a igreja apenas seguiu a sabedoria das idades - a sabedoria dos antigos arianos, que também é “justificada pelos seus filhos”; porque, assim como o devoto moderno do hinduísmo não entende uma palavra de sânscrito, nem o  parsi uma sílaba do Zend [1], assim também para o católico comum não há diferença alguma entre um texto em Latim e os símbolos hieroglíficos do Egito antigo. O resultado é que todos os três - o Alto Sacerdote Hindu, o Mobed zoroastrista e o Pontífice Católico Romano,  obtêm oportunidades ilimitadas para produzir novas doutrinas religiosas a partir das suas próprias fantasias,  para benefício das suas respectivas igrejas. 

Para dar as boas-vindas a este grande dia, os sinos são tocados em sinal de felicidade à meia-noite por toda Inglaterra [2] e pelo continente. Na França e na Itália, depois da celebração da missa em igrejas magnificamente decoradas, “é costume que os participantes tenham acesso a uma recepção (reveillon), para que possam enfrentar melhor o cansaço da noite”, afirma um livro sobre os cerimoniais da igreja papal. Esta noite de jejum cristão nos lembra do Sivaratree dos seguidores do deus Shiva - o grande dia de tristeza e jejum, no décimo-primeiro mês do ano hindu. A diferença é que entre os seguidores de Shiva a longa vigília noturna é precedida e seguida de um jejum estrito e rígido. Não háreveillons ou soluções de meio-termo entre eles. É verdade que eles não passam de “pagãos” iníquos, e portanto o seu caminho até a salvação deve ser dez vezes mais difícil.

Embora seja agora universalmente celebrado pelas nações cristãs como o aniversário de nascimento de Jesus, o dia 25 de dezembro não era aceito como tal, inicialmente. O Natal, a mais móvel das datas de celebrações cristãs, era frequentemente confundido com a Epifania [3] e celebrado nos meses de abril e maio.  Como nunca houve qualquer registro ou prova autêntica de sua identificação, seja em história secular ou eclesiástica, a seleção daquele dia permaneceu sendo opcional por longo tempo, e foi  só no século IV que, estimulado por Cyril de Jerusalém, o papa (Julio I) ordenou aos bispos que fizessem uma investigação e chegassem finalmente a algum acordo quanto à data presumível do nascimento de Cristo. A escolha deles recaiu sobre 25 de dezembro -, e desde então tem sido comprovado que a escolha foi muito infeliz! Foi Dupuis, seguido por Volney, que desferiu os primeiros tiros contra esta data. Eles comprovaram, com dados astronômicos muito claros,  que durante períodos incalculáveis antes da era cristã quase todos os povos antigos tinham celebrado o nascimento dos seus Deuses do Sol exatamente nesta data.

“Dupuis mostra que o signo celeste da VIRGEM E A CRIANÇA já existia vários milhares de anos antes de Cristo” - escreve Higgins em sua obraAnacalypsis.  Já que Dupuis, Volney e Higgins foram considerados pela posteridade como infiéis e inimigos da Cristandade, parece ser correto citar, nesta questão, as confissões do bispo cristão de Ratisbone, “o homem mais sábio que a idade média produziu”,  o dominicano Albertus Magnus. “O signo da Virgem celestial se eleva acima do horizonte no momento que nós fixamos como o  do nascimento do Senhor Jesus Cristo”, diz ele, em “Recherches historiques sur Falaise, par Langevin prêtre”.  Assim, Adônis, Baco, Osíris, Apolo, etc., todos nasceram em 25 de dezembro. O Natal ocorre exatamente no momento do solstício de inverno[4]; os dias são então mais curtos, e a Escuridão está mais presente que nunca na face da terra. Todos os deuses  solares nascem anualmente naquela época; porque a partir daquele momento a sua Luz afasta cada vez mais a escuridão, a cada novo dia, e o poder do Sol começa a aumentar.

Seja como for, as festividades de Natal que foram celebradas pelos cristãos durante quase 15 séculos tiveram um caráter particularmente pagão. E isso não é tudo: mesmo as atuais cerimônias da igreja dificilmente podem escapar da crítica de que foram copiadas quase literalmente dos mistérios do Egito e da Grécia, celebrados em homenagem a Osíris e Horus, Apolo e Baco. Tanto Ísis como Ceres eram chamadas de “Virgens Sagradas”, e um BEBÊ DIVINO pode ser encontrado em cada religião “pagã”. Vamos agora traçar dois retratos do Feliz Natal.  Um descreve os “bons e velhos tempos”. O outro descreve o estado atual da adoração cristã.

Desde os primeiros dias do seu estabelecimento como Natal, o dia foi visto ao mesmo tempo como uma comemoração sagrada e uma festividade da maior alegria: ela era dedicada igualmente à devoção e à diversão desregrada. “Entre as festanças da temporada de Natal estavam as chamadas  festas de tolos e asnos, as saturnálias grotescas que eram chamadas de ‘liberdades de dezembro’, nas quais tudo o que fosse sério era parodiado, a ordem da sociedade era revertida, e o seu sentido de decência ridicularizado” - diz um compilador de crônicas antigas. “Durante a idade média, isso era celebrado através do espetáculo alegre e fantástico dos mistérios dramáticos, realizado por personagens em máscaras grotescas e roupas extravagantes. O show normalmente representava uma criança em um berço, rodeada pela Virgem Maria e por São José, por cabeças de touros, querubins, por Magos do Oriente (osMobed de antigamente), e múltiplos ornamentos.”  O costume de entoar cânticos durante o Natal, chamados de Hinos de Natal, visava relembrar as canções dos pastores na Natividade. “Os bispos e o clero frequentemente se juntavam à população em tais cânticos, e as canções eram acompanhadas  por danças e pela música de tambores, guitarras, violinos e órgãos....” Podemos acrescentar que até os tempos atuais, durante os dias que antecedem o Natal, tais mistérios estão sendo encenados, com bonecos e marionetes, no sul da Rússia, na Polônia e na Galícia; e são conhecidos como Kalidowki. Na Itália, menestréis da Calábria descem das suas montanhas até Nápoles e Roma, e lotam as capelas da Virgem-Mãe, homenageando-a com sua música animada.

Na Inglaterra, os festejos costumavam começar na véspera de Natal e iam frequentemente até a Candelária (2 de fevereiro) [5], sendo que todos os dias eram dias santos até a décima-segunda noite (6 de janeiro). Nas casas de grandes nobres era nomeado um “senhor do desregramento” ou “abade da não-razão”, cujo dever era cumprir o papel de palhaço.  “A despensa ficava cheia de frangos, galinhas, perus, gansos, patos, carne bovina, carne de carneiro, carne de porco, tortas, pudins, nozes, ameixas, açúcar e mel.” (. . . .) “Um fogo brilhante, feito de pedaços grandes de lenha, o principal dos quais era chamado de ‘lenha de Natal’ e era capaz de queimar até a véspera da Candelária, era mantido em ambiente seguro; e a abundância era compartilhada pelos arrendatários do senhor, em meio a música, encantamentos, quebra-cabeças,hotcockels [6], brincadeira do tolo, flores cabeça-de-dragão, piadas, risos, desafios com perguntas e respostas, prendas penhoradas nos jogos, e danças.”

Em nossos tempos modernos, os bispos e o clero já não se somam à população que canta e dança, e as “festas de tolos e asnos” são ensaiadas mais na sagrada privacidade do que diante de perigosos observadores de olhos atentos. No entanto as festas de comida e bebida são preservadas em todo o mundo cristão; e sem dúvida ocorrem mais mortes súbitas provocadas por gula e intemperança durante os feriados de Natal e a Páscoa do que em qualquer outra época do ano. A  cada ano que passa, a adoração cristã se limita, cada vez mais, a uma falsa ostentação.  A ausência de coração em tais  fingimentos tem sido denunciada inúmeras vezes, mas pensamos que isso nunca foi feito com um toque de realismo mais emocionante do que em uma encantadora história-de-sonhos publicada no “New York Herald” perto do último Natal [7]. Um homem idoso, que presidia uma reunião pública, disse que aproveitaria a oportunidade para relatar uma visão que ele havia tido na noite anterior. “Ele pensou que estava de pé no púlpito da mais bela e magnífica catedral que ele jamais havia visto. Diante dele estava o sacerdote ou pastor da igreja,  e a seu lado estava um anjo com uma tabuleta e um lápis na mão, cuja missão era registrar cada ação devocional ou oração que ocorresse em sua presença e se elevasse como uma oferenda aceitável até o trono de Deus. Cada banco da igreja estava cheio de devotos de ambos os sexos. A mais sublime música que ele jamais ouvira encheu o ar com sua melodia. Todos os belos serviços ritualísticos da igreja, inclusive um sermão  insuperavelmente eloquente de um hábil sacerdote tinham já ocorrido, e no entanto o anjo registrador não fez anotação alguma em sua tabuleta! Ao final, a congregação foi dispensada pelo pastor com uma longa oração de belas frases, seguida por uma bendição, e no entanto o anjo não  fez um só gesto!”

“Observado ainda pelo anjo, o orador saiu pela porta da igreja que ficava atrás da congregação ricamente vestida. Uma pobre mulher esfarrapada permanecia na sarjeta da calçada, estendendo sua mão pálida e desnutrida e silenciosamente pedindo esmolas.  Enquanto passavam por ali os devotos ricamente vestidos, eles se desviavam da pobre Madalena.  As damas mantinham à distância as suas sedas, os seus mantos enfeitados de joias, para que não pudessem ser contaminados pelo toque da mão dela.”

“Neste momento um marinheiro bêbado aproximou-se oscilando pelo outro lado da calçada. Quando ele chegou à altura da pobre menina abandonada, ele cambaleou atravessando a rua até onde ela estava e, tirando do bolso algumas moedas de pequeno valor, colocou-as na mão dela, enquanto dizia:

‘Aqui, pobre miserável abandonada, pegue isto!’ 

Uma radiância celeste agora iluminou a face do anjo registrador, que imediatamente anotou o ato de simpatia e compaixão do marinheiro em sua tabuleta, e afastou-se considerando-o um sincero sacrifício a Deus.”

Alguém dirá que esta é uma materialização da história bíblica do julgamento de uma mulher culpada de adultério.  Pode ser que sim; no entanto, a história descreve magistralmente a situação atual da nossa sociedade cristã.

De acordo com a tradição, na véspera do Natal, os bois podem ser sempre encontrados repousando sobre seus joelhos, como se estivessem em oração e devoção, e “havia um famoso espinheiro no pátio  do mosteiro de Glastonbury, que sempre dava botões de flor no dia 24 e florescia no dia 25 de dezembro”; fato que, considerando que o dia fora escolhido ao azar pelos Padres da igreja, e que o calendário foi alterado do sistema antigo para o novo, mostra uma perspicácia notável,  tanto por parte dos bois como por parte do vegetal!  Há também uma crença tradicional, preservada até nós por Olaus, o arcebispo de Upsala, de que, no festival do Natal,  “os homens que vivem nas regiões frias do Norte são súbita e estranhamente metamorfoseados em lobos; e que uma gigantesca multidão deles se encontra em um lugar escolhido e expressa tamanha raiva da humanidade que esta sofre mais com os seus ataques do que jamais poderia sofrer com ataques dos lobos naturais.”

Metaforicamente falando, este parece ser o caso com os homens, e mais do que nunca agora, e especialmente nas nações cristãs. Não há necessidade de esperar pela véspera de Natal para ver nações inteiras transformadas em “feras selvagens” - especialmente em tempos de guerra.

(Theosophist, Dezembro 1879)

NOTAS:

[1] Parsis são os  seguidores do zoroastrismo na Índia. “Zend” é a versão da “Avesta” - a principal escritura sagrada dos parsis - no idioma persa clássico, o “pálavi”,  falado nos séculos  três a nove da era cristã. A escritura persa é chamada hoje de “Zend-Avesta”. (CCA)

[2] A Índia era colônia inglesa na época. (CCA)

[3] A epifania ou Dia de Reis é comemorada hoje em seis de janeiro. (CCA)

[4] Inverno - no hemisfério norte. (CCA)  

[5] Candelária; festa da Purificação da Virgem. No Brasil, também é o dia de Iemanjá, a deusa das águas. (CCA)

[6] Hotcockels - jogo infantil tradicional em que uma criança, com os olhos cobertos, deve adivinhar quem bateu nela.  (CCA)  

[7] Último Natal  - isto é, na época do Natal de 1878. (CCA)  

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O texto acima foi traduzido de “Theosophical Articles”,  H. P. Blavatsky,  volume III, Theosophy Company,  500 pp., Los Angeles, 1981, pp. 58-62. Título original do artigo: “Christmas Then and Christmas Now”. 

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